Quem confere a programação do Globo Repórter dos últimos meses encontra uma série de episódios sobre os temas pitorescos que lhe são clássicos: viagens ao Jalapão, Noruega, Capadócia Nordestina… E de repente, na última sexta-feira, dia 10 de julho, se depara com uma hora inteira dedicada a algo que a princípio é incrivelmente prosaico: andar de bicicleta. Pelo menos para quem a utiliza. Sob olhos dos bem-intencionados (mas reticentes) repórteres que produziram essa edição do tradicional programa da Globo, porém, parece que não há nada mais excepcional que viver pedalando.
Ao longo do programa, repetidamente, os jornalistas resvalam em vícios de discurso quando apresentam andar de bicicleta como algo difícil, perigoso ou exótico. Isso transparece na escolha de termos, de imagens e nas informações que optam fornecer (ou não) ao telespectador ao longo do programa. Quem assiste o episódio até o fim dificilmente será convencido a trocar seu carro pela bicicleta, por mais que, durante mais de 40 minutos de vídeo, a reportagem insista sorridente que andar de bicicleta é muito saudável e ecológico. Por que será?
Pedalar é perigoso?
O programa já começa relatando que dona Jacqueline Kittelsen, mãe do entregador Anderson, vive angustiada porque “bicicleta não é igual a carro” – e a edição do programa ignora sumariamente o fato de que, em 2019, das 874 mortes no trânsito na cidade de São Paulo, apenas 36 envolviam ciclistas. Em seguida, narra a triste história do rapaz, que trabalha como bikecourier apesar do pai, ciclista, ter morrido.
Enquanto pedala, o repórter Márcio Gomes pergunta se há algum motorista que respeita o ciclista, puxando uma resposta que reforça a impressão que quem está atrás do volante tem quando vê alguém pedalando: a de que ciclistas estão sempre a 30 segundos de serem atropelados. Um take vertiginoso das bicicletas passando entre carros e caminhões dá a impressão de que o perigo é iminente. Mas o repórter acalma o telespectador: o entregador conta com um anjo da guarda, seu falecido pai, que Anderson tem tatuado no corpo. Quem não tem essa ajudinha do além, melhor pensar duas vezes.
“Hoje eu descobri como pode ser difícil para um ciclista abrir espaço entre os carros. Dá medo!”, finaliza Márcio Gomes. Esse discurso se repete ao longo da hora: a ênfase nos motoristas desrespeitosos, trechos esburacados, “ameaças” vindas de outros veículos, benefícios “apesar” dos riscos. No final do programa, depois de acompanhar uma viagem bucólica de bicicleta no Pico do Paraná ao lado de um casal, a repórter Ana Zimmerman narra, certa de que está elogiando: “É uma sensação de liberdade que faz esquecer o medo!”.
A realidade, é claro, é que andar de bicicleta não é perigoso em si. Tanto que qualquer criança pode aprender a andar de bicicleta. Já dirigir carro, algo que dona Jacqueline considera muito mais seguro, é proibido para menores de 18 anos, visto que um automóvel é uma máquina capaz de matar pessoas, dentro e fora dela. Certamente a maioria dos 36 óbitos no trânsito em 2019 não aconteceriam se não houvesse… trânsito (de automóveis). E no entanto, sob o prisma que se apresenta, pedalar na cidade é visto como algo que apenas os valentes – ou inconsequentes – decidem fazer no dia a dia. Que tal exibir também os muitos exemplos de quem consegue percorrer a cidade com segurança, dentro e fora das ciclovias?
Pedalar é difícil?
Outra matéria dessa edição do Globo Repórter se inicia com a jornalista Flávia Jannuzzi acompanhando o ciclista Samuel. Ele, cheio de força de vontade, sai às 4:10h da manhã para pedalar com seu grupo de amigos, da Barra da Tijuca até o Recreio dos Bandeirantes. São 250 km por semana! Ele vê o sol nascer! Depois pode comer de tudo! Que lindo!
O problema é a mensagem embutida nessa positividade toda: se você não é dono do infame “porte de atleta”, melhor se resignar ao conforto do seu travesseiro, e ao busão ou carro.
Essa mensagem está escondida pelo programa inteiro. Nenhum dos entrevistados faz um percurso inferior a 10 km. Para o telespectador médio, alguém que trabalha pedalando 100 km por dia, ou que todos os dias vai de Caxias a Belford Roxo, poderia muito bem tomar chá com Amyr Klink. O casal que passa o sábado carregando os filhotes de bicicleta serra acima poderia igualmente estar fazendo um safári na África. A utilidade dessas informações na vida prática do brasileiro é exatamente a mesma.
Não se apresenta a bicicleta como o que é: a grande aliada das pequenas e médias distâncias, capaz de resolver aquela ida ao banco em minutos, solução para quem precisa chegar logo no metrô. Andar de bicicleta é fácil, e quanto mais fácil se torna andar de bicicleta, mais pessoas a adotam.
Chega a ser cruel como a edição do Globo Repórter passa por cima desse fato. “Nos últimos dez anos, o número de ciclistas em São Paulo cresceu 24%. Em algumas regiões da cidade, o aumento passou de 1000%!”, narra Márcio Gomes, em off. “No horário de pico, a gente vê até engarrafamento nas ciclovias.” Dá a impressão de que foi um acontecimento espontâneo, que ciclitas brotaram do nada. Faltou dizer que foram resultado do único investimento em malha cicloviária consistente já feito na cidade São Paulo, duramente combatido por muitos. Quando se cria espaço para as bicicletas, elas aparecem.
Pedalar é exótico?
Fiel às raízes, o Globo Repórter caprichou apresentando o público brasileiro ao município de Afuá, no Pará. A “Veneza marajoara” é uma cidade erguida sobre palafitas onde, portanto, não é permitido o trânsito de automóveis, grandes e pesados demais para suas ruas. Todos ali, então, se locomovem de bicicleta. Sob o olhar do repórter Fabiano Villela, no entanto, mesmo no lugar onde pedalar é padrão, andar de bicicleta é excepcional: “é claro que o coração dos pais fica apertado, mas pedalar para os moradores de Afuá é tão natural quanto andar”, afirma ele ao descrever a rotina de uma criança de oito anos que pedala para ir à escola.
Sem automóveis, as ruas são todas de mão dupla e estreitas, não há departamento de trânsito, e o transporte é democrático: quase 80% dos moradores pedalam. “Você deve se perguntar: tem muito acidente, não?”, ele questiona logo em seguida. “Nada disso!”, surpreende-se. “Não sei como, mas eles se entendem numa boa!” Quem já passou por outros lugares em que há alta circulação de bicicletas, como Amsterdam e Utrecht, sabe que não há nada mais natural: a fluidez do trânsito aumenta muito quando não há automóveis para competir pelo espaço. A natureza não-encapsulada da bicicleta torna os ciclistas mais atentos e mais considerados uns com os outros, principalmente em grandes números.
Decidido a encontrar coisas “muito loucas” nessa ilha “muito estranha”, o repórter apresenta então uma sucessão de bicicletas de policiais, de bombeiros, com cabeça de boi, de carga, que fazem as pessoas chegando de guarda-chuva para a festa no início da matéria parecerem comezinhas. Ao final, quando chega no duelo de bicitáxis, o resto do país pode respirar aliviado. Ufa, esse tipo de vida esquisita em que a bicicleta é tão prevalente é algo que só acontece mesmo bem longe, lá na ilha de Marajó.
O suposto exoticismo do ciclismo permeia de forma mais sutil o programa como um todo, no entanto. Há uma insistência, do começo ao fim, em se retratar os ciclistas sempre com roupas de lycra, capacetes, carrinhos acoplados, qualquer tipo de detalhe que os marque como “outro”. (Ironicamente, os únicos ciclistas neste Globo Repórter que não se fantasiam de ciclista são os que vivem em Afuá, a “cidade muito estranha”.) Dá a impressão que apenas quem estiver disposto a se vestir de super-herói pode optar pela bicicleta. Falta mostrar as pessoas que pedalam de terno, que vão para a balada pedalando já com a roupa do fervo, que pedalam para a faculdade de calça jeans e ainda param no mercado na volta para comprar a janta… Mais uma vez, algo muito corriqueiro nas cidades onde o uso de bicicleta no dia-a-dia é elevado. Gente como a gente, que não se fantasia de alienígena para andar de bicicleta – se não quiser.
Não há nada mais banal que andar de bicicleta
É essencial que se dê destaque ao uso da bicicleta. Como meio de transporte, como forma de lazer, como prática esportiva. Mas, antes de tudo, ela deve ser retratada como o que é: um instrumento ao alcance de todos, um veículo eficiente que apresenta o mínimo de barreiras para ser utilizado. Para se andar de bicicleta não é preciso estar em boa forma, não é preciso ter roupa especial, não é preciso ser jovem, não é preciso ter experiência. É necessário apenas ter uma bicicleta, qualquer que seja – e ela nem precisa ser própria.
Ao se mostrar a bicicleta como algo natural, acessível a todos e desejável, fica muito mais fácil apresentá-la como a solução (que ela é) para as questões de mobilidade urbana e saúde pública que enfrentamos. Ou como bem disse Sandra Annenberg em sua apresentação, mostrar que “polui menos, é mais econômica, ajuda a evitar doenças crônicas e a perder peso” – além de ser uma maneira de evitar aglomerações no transporte e, portanto, coibir a transmissão de covid-19. Basta ter atenção na hora de transmitir essas informações ao público, e esses vícios a respeito do transporte ativo não aparecerão mais, minando o trabalho informativo dos jornalistas.
Excelente matéria !!! Parabéns !!!